O Chile sempre teve uma tradição de proteção à criança. Desde meados do século 20, ao mesmo tempo em que cresceu mundialmente uma preocupação e consciência do tema, nossa abordagem adquiriu maior profundidade e intensidade. Essa proteção, no entanto, concentrou-se em tentar aliviar as maiores carências, como a escassez de alimentos e as lacunas de promoção à saúde, através do fornecimento da alimentação suplementar, vacinas e cuidados médicos básicos.
Há 58 anos a Organização das Nações Unidas adotou a Declaração dos Direitos da Criança e faz 28 anos desde que a mesma organização aprovou a Convenção sobre os Direitos da Criança (CRC), um texto ratificado pelo Chile em 1990. Isso significa que há 27 anos – apenas alguns meses depois da restauração da democracia – nosso país assumiu um compromisso claro e firme com a primeira infância como política integrada e transversal, assumindo os quatro princípios fundamentais da Convenção: a não discriminação; o interesse superior da criança; seu direito à sobrevivência, desenvolvimento e proteção; e sua participação direta nas decisões que a afetam.
Demos passos importantes para honrar esse compromisso. Alguns dos maiores marcos podem ser vistos na Lei de Filiação de 1998, que pôs fim à espantosa distinção para as crianças nascidas fora do casamento, e a introdução de novos procedimentos no sistema de justiça de família em 2004, juntamente com uma legislação voltada para adoção que ressalva os interesses das crianças, permitindo-lhes viver em uma casa onde se sintam amadas e protegidas.
No entanto, um dos marcos mais significativos para garantir que todas as crianças atingissem seu potencial pleno de desenvolvimento ocorreu há uma década, com o surgimento do sistema ‘Chile Crece Contigo’ (‘Chile Cresce Contigo’ em português) – quando foi elaborada a primeira política sistêmica, intersetorial e articulada de proteção aos direitos da primeira infância que abrange o monitoramento pré-natal das mães e a fase do nascimento até os 4 anos, período que recentemente foi estendido para os 9 anos de idade.
A Convenção sobre os Direitos da Criança convoca os estados a proteger e promover os direitos das crianças, acompanhando-as em seu processo de desenvolvimento e agindo com medidas específicas de proteção ou reforço quando necessário. Uma tarefa desta natureza requer uma resposta de múltiplas dimensões, capaz de articular e reforçar o trabalho feito por diferentes setores, e que transcenda o período de um mandato governamental, estabelecendo-se como um compromisso do Estado com as crianças, e não de um governo em particular. Em outras palavras, o que fizemos foi mudar nossa maneira de trabalhar com a primeira infância.
Assim, ao invés de cada setor atuar de sua maneira, uniram-se os esforços, criamos novos programas e benefícios, redes comunitárias foram implantadas e passamos a trabalhar de forma diferente com as crianças. Começamos monitorando a gravidez das mães, realizando exames de saúde para as crianças, fornecendo suporte para o desenvolvimento global delas e desenhando intervenções específicas, principalmente em questões relativas à saúde, educação e justiça.
Esta mudança de paradigma, originalmente vista com suspeita, agora é aceita como essencial, e não existem mais dúvidas sobre a importância da estimulação nos primeiros anos de vida de uma criança. Hoje, todos concordamos que é essencial detectar atrasos no desenvolvimento da criança para que possamos agir a tempo. E ninguém mais se surpreende que o melhor investimento que um país pode fazer é na primeira infância, para combater a desigualdade em suas raízes e assim derrubar as diferenças que nos separam desde o berço.
Resultados e expansão
Temos visto resultados concretos. Nos últimos dez anos, cerca de 2 milhões de gestantes fizeram parte de nossa estratégia de monitoramento parental; incentivamos o(a) parceiro(a) da mãe ou outro membro da família a estar presente no nascimento, e agora isso acontece em seis de cada dez casos; mais de 1.6 milhões de crianças nasceram protegidas pelo sistema, e mais de 1 milhão de pacotes de roupas e outros itens essenciais foram entregues a bebês nascidos no sistema público de saúde.
O contato pele a pele por meia hora ou mais após o nascimento vem aumentando, tendo atingido 76,3% em 2016. Além disso, neste ano a amamentação exclusiva até o sexto mês também aumentou para 56,1%.
Mas está claro que temos de ir além do nascimento. Os exames de saúde e o acompanhamento do crescimento das crianças nos ajudam a detectar sinais de atraso no desenvolvimento, o que nos permite encaminhá-las a especialistas para formas específicas de estimulação. Graças a isso, 42% das crianças que apresentavam atrasos em seu desenvolvimento estão agora dentro dos marcos esperados.
Frequentar a Educação Infantil oferece oportunidades de desenvolvimento, e a taxa de frequência escolar entre as crianças com idade entre 4 e 5 anos é de 90%. O progresso mais significativo entre 2006 e 2015 aconteceu com crianças de zero a 3 anos: em 2006, a taxa de frequência para esta faixa etária foi de 16,4%, e em 2015 de 30% (Ministério do Desenvolvimento Social, 2016).
Esta é, sem dúvida, uma boa notícia, especialmente neste momento em que estamos expandindo a cobertura do sistema para crianças de 5 a 9 anos. Esta expansão está sendo implantada ao longo de duas novas linhas de ação. A primeira é o programa de apoio à saúde mental, que providenciará tratamento para crianças nessa faixa etária. Começamos a implantá-la em 23 municípios, e gradualmente a estendemos para beneficiar 18.600 crianças entre 2016 e 2017. A segunda linha de ação é o programa integrado de apoio à aprendizagem, que utiliza ferramentas de estimulação e criatividade, como o ‘Cantinho dos Jogos’, que estamos distribuindo a todas as crianças em pré-escolas do sistema público de educação.
Paralelamente, reforçaremos os atuais programas e incluiremos novas intervenções visando atender todas as crianças entre 5 e 9 anos de idade que frequentam a educação pública ou que são atendidas pelo sistema público de saúde do país.
Desafios
Embora o sistema já tenha sido implantado em todo o país, e esteja produzindo resultados significativos, ainda temos desafios a enfrentar. Um deles é garantir que o sistema funcione com qualidade em todos os municípios, uma vez que, em alguns deles, ainda existem dificuldades na prestação dos serviços de maneira apropriada e no momento oportuno.
Há ainda problemas estruturais relacionados à desigualdade, pobreza e violência, que levam mães, pais e adultos de referência a situações de estresse muito difíceis e que acabam por produzir um impacto negativo no desenvolvimento das crianças. Entre esses fatores, a pobreza é o que mostra sinais de diminuição constante em todo o país, no entanto nas famílias com filhos ela é maior do que no resto da população. A pressão desses fatores estruturais na vida das crianças implica romper o tradicional isolamento das políticas para a primeira infância. Assim, nosso desafio atual é integrar a política da primeira infância com as políticas mais gerais de desenvolvimento do país.
Da mesma forma, desenvolver e melhorar continuamente o sistema requer intervenções com elevado grau de conhecimentos específicos. A inclusão dos recentes avanços no conhecimento e nas estratégias relativas à primeira infância implica em implantar oportunidades de capacitações continuadas e ensino de competências específicas, geralmente não presentes em cursos técnicos. Isto requer acompanhamento de redes de trabalho intersetoriais e assistência técnica permanente e especializada.
Nós também sabemos que qualquer política social está constantemente em processo de refinamento, para que possa assim ser gerida de forma mais eficiente e efetiva. Isso implica colocar o foco nos usuários, simplificar processos, instrumentos e acesso para a comunidade, dar transparência à forma como usamos e distribuímos os recursos e promover processos de participação cidadã. Neste sentido, uma ferramenta importante como o sistema de registro, encaminhamento e monitoramento administrado pelo ‘Chile Cresce Contigo’ deve aumentar sua capacidade de gestão da informação. Isso pode ser feito começando a usar modelos de segmentação visando prever o surgimento de fatores de riscos, para que alertas possam ser emitidos e o tipo correto de serviço possa ser oferecido no momento certo.
Sistema de garantia de direitos infantis
‘Chile Cresce Contigo’ constituirá a base operacional do futuro Sistema de Garantia dos Direitos da Infância, com o qual esperamos atender a toda a população com menos de 18 anos.
Além de reforçar o que já está funcionando, isso envolve a colocação de novos subsistemas para outras faixas etárias. Para uma execução eficiente e resultados efetivos, precisamos de uma perspectiva modular. Como diz Mary Beloff, os sistemas integrados de proteção infantil são “um modelo de construção”, em que as peças de um todo são gradualmente inseridas em um sistema de grande escala (Beloff, 1999). A experiência do ‘Chile Cresce Contigo’ mostra que isso leva tempo e necessita um suporte institucional específico.
Até março de 2018 criaremos, junto à Subsecretaria de Infância do Ministério do Desenvolvimento Social, um Comitê Interministerial de Desenvolvimento Social e Infantil, de onde o programa ‘Chile Cresce Contigo’ continuará a ser gerido. Juntamente com isso, meninos e meninas terão seu Conselho da Infância, um órgão independente que assegurará que seus direitos sejam respeitados, promovidos e protegidos pelo Estado.
Essa sólida estrutura institucional funcionará dentro de um novo marco regulatório que salvaguarda efetivamente tanto o reconhecimento das crianças como sujeitos com direitos, como o exercício desses direitos sem qualquer discriminação. Assim, em um ciclo de 10 anos, teremos lançado os fundamentos necessários para proteger o desenvolvimento de nossas crianças desde a primeira infância e abriremos um mundo de oportunidades para que atinjam seu pleno potencial. Ao fazer isso, poderemos dizer a todos os nossos meninos e meninas – de forma consistente e coerente – “O Chile cresce com você”.
As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.