É possível implantar em curto espaço de tempo um programa de atenção à Primeira Infância, especialmente voltado ao desenvolvimento infantil integral, em um país continental como o Brasil, com 27 estados e 5.570 municípios? Graças ao programa ‘Criança Feliz’ estamos gradativamente aprendendo que sim.

O Brasil tem mais de 207 milhões de habitantes, dos quais 11% são crianças com idade inferior a 6 anos, sendo que cerca de 42% delas vivem em famílias com renda mensal abaixo da linha da pobreza (IBGE, 2017). Nos últimos trinta anos o país assistiu a um crescente movimento em favor da primeira infância, que se traduziu em políticas sociais descentralizadas que redundaram em um impacto significativo na redução da mortalidade infantil. Além disso, criou-se um importante arcabouço legal, formado pela Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, e o Marco Legal da Primeira Infância, de 2016, que buscaram assegurar a garantia integral dos direitos das crianças.

O programa ‘Criança Feliz’ foi instituído em 05 de outubro de 2016 por meio de decreto presidencial, com a finalidade de promover o desenvolvimento integral das crianças na primeira infância. Nove meses depois, no dia 14 de julho de 2017, na cidade de Pacatuba, no estado de Sergipe, era oficialmente registrada a primeira visita domiciliar do programa.

Dada a necessidade de superar as desigualdades no Brasil, o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) optou por priorizar as famílias mais vulneráveis – aquelas atendidas pelo programa de transferência de renda denominado ‘Bolsa Família’.

O programa ‘Criança Feliz’ tem dois pilares principais: as visitas domiciliares e a ação intersetorial:

  • As visitas domiciliares semanais têm como objetivo promover o fortalecimento das competências familiares e, especialmente, das crianças mais vulneráveis. Os visitantes domiciliares são treinados utilizando material técnico baseado no método Care for Child Development – CCD (Desenvolvimento de Cuidados Infantis) desenvolvido pelo UNICEF, a Organização Mundial da Saúde e a Organização Pan-Americana da Saúde, com um manual de visita domiciliar adicional preparado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). As mulheres grávidas recebem uma visita por mês; as crianças de 0 a 3 anos, uma visita por semana; e crianças de 3 a 6 anos, uma visita a cada 15 dias.
  • Já as iniciativas intersetoriais buscam fortalecer as políticas regionais de assistência social, saúde, educação, cultura, direitos humanos e direitos da criança. Por exemplo, é importante que na área de saúde, na Caderneta da Criança, todas elas tenham seus dados atualizados de vacinação e de acompanhamento nutricional.

Embora coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Social (MDS), por meio da Secretaria Nacional de Promoção do Desenvolvimento Humano, o programa Criança Feliz é implementado de forma descentralizada pelos estados e municípios. Em cada um dos três níveis de governo – federal, estadual e municipal – o programa conta com um comitê diretivo intersetorial e um grupo técnico, ao lado de um órgão coordenador. A Coordenação Nacional do PCF é responsável pelo Programa no país, fornecendo apoio técnico às Coordenações Estaduais, além da formulação e implementação de estratégias de capacitação de multiplicadores. Aos Estados cabem a responsabilidade pela implementação do Programa em suas regiões, as ações de sensibilização, mobilização e capacitação dos supervisores municipais, além do monitoramento do processo. Os Municípios, por fim, são responsáveis pela implantação do Programa no nível local, capacitando os visitadores, elaborando planos de visitas, supervisionando o trabalho em campo e realizando monitoramento e avaliação.

O programa tinha um orçamento de 98 milhões de dólares para 2017, com uma projeção para 2018 de 167 milhões de dólares. O governo federal transfere recursos para os estados, por meio do Fundo Nacional de Assistência Social, para custear treinamentos, despesas e transferências para cada município: R$ 75,00 por mês por indivíduo visitado, desde que os visitantes domiciliares cumpram o número estipulado de visitas por mês. Esses profissionais devem ter pelo menos o diploma do ensino médio. Através de um sistema de formação em cascata, recebem treinamento de supervisores municipais, que por sua vez foram treinados pelos chamados multiplicadores estaduais (em ambos os casos, eles devem ter diploma universitário). Cada supervisor municipal tem sob o seu comando um máximo de 15 visitantes, cada um dos quais pode atender a um total de 30 pessoas, incluindo crianças e mulheres grávidas. Os supervisores recebem um salário médio de 609 dólares e os visitantes recebem cerca de 318 dólares por mês. Para contextualizar esses números, o salário médio do Brasil é de cerca de 655 dólares, enquanto o salário mínimo é de 228 dólares.

Em suma, o Criança Feliz tem como meta alcançar 3 milhões de crianças e 640.000 mulheres grávidas, incluindo 75.000 crianças com deficiência e 8.600 crianças sob medidas especiais de proteção. Desse total, cerca de 738.000 crianças devem ser alcançadas até dezembro de 2018, na fase um; e 1,5 milhão até o final de 2019, na fase dois.

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Foto: Mauro Vieira/Programa Criança Feliz /MDS

Lições provisórias aprendidas sobre a ampliação da escala

No momento em que esse documento é escrito, o programa já existe há 16 meses. A maior parte do treinamento nos estados foi realizado de fevereiro a junho de 2017. Das 27 unidades federativas do país (compreendendo 26 estados e o distrito federal), 25 se inscreveram no programa. Dos 5570 municípios, 2614 aderiram em janeiro de 2018. Destes, 1856 iniciaram visitas domiciliares, envolvendo 185.910 crianças e 26.383 gestantes. As Figuras 1 e 2 mostram como a implementação do programa avançou, pelo número de municípios que iniciaram as visitas e pelos indivíduos atingidos, respectivamente.

Quais fatores foram mais significativos para alcançar tal escala em um tempo tão curto? A aprovação do Marco Legal da Primeira Infância pavimentou o caminho para o decreto presidencial que criou o programa. Em ambos os casos, a liderança política foi fundamental, com um grande envolvimento da Frente Parlamentar para a Primeira Infância. Osmar Terra, um dos principais atores e co-autor da lei que forneceu o marco legal, tornou-se Ministro do Desenvolvimento Social e colocou o Criança Feliz na lista de prioridades. Segundo suas próprias palavras: “Nos primeiros mil dias de vida acontecem transformações cerebrais, que tornam esse período o mais extraordinário de todo o ciclo da vida. Nele se formam as competências básicas para a aprendizagem do mundo em que vivemos”.

A conscientização e a mobilização foram fundamentais: o lançamento nacional foi seguido por eventos estaduais e locais, com a participação de governadores e prefeitos. O mesmo ocorreu com o envolvimento nos três níveis de governo de diferentes setores: saúde, educação, cultura, assistência social e direitos humanos. O programa contou também com o apoio de parceiros nacionais e internacionais, incluindo a Fundação Bernard van Leer, a Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, a OPAS e a OMS, o Programa Primeira Infância Melhor, UNICEF, Educação das Nações Unidas, UNESCO, Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e Instituto de Educação e Pesquisa (INSPER). Entre outras coisas, esses parceiros apoiaram o desenvolvimento do material técnico e da metodologia de treinamento, além de contribuir para o monitoramento do programa e sua avaliação: iniciar um programa dessa magnitude só faz sentido se estiver totalmente definido e preparado. Por exemplo, o apoio da Fundação Bernard van Leer foi crucial para o início da capacitação dos coordenadores estaduais.

A tecnologia também foi bem aproveitada. Uma plataforma informatizada foi criada para facilitar os estados e municípios inscritos no programa, o que requer a aprovação do conselho local de assistência social. O monitoramento da implementação foi realizado diariamente e semanalmente, com o uso de um sistema eletrônico chamado Prontuário SUAS. O WhatsApp tem se mostrado extremamente útil para coordenadores nacionais, estaduais e municipais, visitantes e supervisores residenciais manterem contato e troca de experiências, documentos, fotos e vídeos; é também um fator estimulante, motivador e fortalecedor para a interação entre órgãos governamentais, humanizando a implementação do programa.

Desafios e perspectivas

É importante acompanhar constantemente a implementação, monitorar os indicadores intersetoriais e avaliar o próprio programa, a fim de identificar oportunidades de melhoria contínua. Além disso, ao final de seu primeiro ano de implementação, podemos identificar vários desafios notáveis:

  • definir estratégias para sua consolidação e sustentabilidade como uma política nacional
  • continuar a expandir, mantendo os padrões mínimos de qualidade
  • estabelecer modelos permanentes de treinamento de supervisores e visitantes domiciliares
  • apoiar e aumentar as iniciativas intersetoriais, em especial no que diz respeito às mulheres e à saúde infantil e à segurança alimentar e nutricional
  • oferecer educação infantil de qualidade, melhorar a escolaridade dos pais e fornecer apoio social às famílias mais vulneráveis
  • manter a velocidade do aumento de escala em um ano (2018) de eleições federais e estaduais
  • manter o desenvolvimento da primeira infância como prioridade para os próximos governos.

Para que o programa Criança Feliz garanta apoio político e recursos financeiros para os próximos anos, é necessário investir constantemente em informar e mobilizar instituições, famílias e sociedade em geral para que todos reconheçam a importância de promover o desenvolvimento da primeira infância.

Agradecimentos

Os autores gostariam de agradecer as magníficas contribuições da equipe do Ministério do Desenvolvimento Social: Maria do Carmo Brant de Carvalho, Ely Harasawa, Frederico de Almeida Meirelles Palma, Juliana Rabelo, Luana Kozen Nunes, Mariana Lelis Moreira Catarina, Palloma Belfort Frutuoso, Renata Aparecida Ferreira, Adriana Barbosa Dantas da Silva, Ayrton Maurício Azeredo Silva, Natália Silva e Maria Cícera Pinheiro. Da mesma forma, estendem sua gratidão aos membros de outros ministérios que colaboraram: Thereza De Lamare Franco Netto, Carolina Helena Micheli Velho, Michele Lessa de Oliveira e Gilvani Pereira Grangeiro. Agradecemos aos consultores e colaboradores Mary Eming Young, Gaby Fujimoto e Miriam Días González. Nossos agradecimentos especiais a Eduardo de Campos Queiroz, Eduardo Marino, Marina Fragata Chicaro, J. Leonardo Yánez, Cecilia Vaca Jones, Fernanda Rezende Vidigal, e nossa gratidão especial aos Coordenadores Estaduais do Criança Feliz, aos multiplicadores, supervisores estaduais e municipais e visitantes domiciliares, que deram vida ao programa, e às famílias que fortalecem as habilidades de seus filhos.

As referências podem ser encontradas na versão em PDF do artigo.

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